A central de monitoramento informa: “Perdemos o sinal do veículo”. Minutos de tensão se transformam em horas de silêncio. Quando a notícia do roubo é confirmada, a primeira pergunta da seguradora não é sobre a violência sofrida pelo motorista ou o valor da carga perdida, mas sim: “O sistema de rastreamento estava funcionando conforme o Plano de Gerenciamento de Risco (PGR)?”. Qualquer anomalia – uma perda de sinal, uma falha no acionamento de uma trava, um desvio de rota não planejado – é imediatamente usada como fundamento para a carta de negativa de cobertura.

Para a transportadora, a sensação é de profunda injustiça. A empresa investe dezenas de milhares de reais em tecnologias de ponta, homologadas pela própria seguradora, treina seus motoristas e segue procedimentos rigorosos. No entanto, no momento do sinistro, a falibilidade inerente à tecnologia – seja por uma “área de sombra”, uma pane no equipamento ou a ação de criminosos com “jammers” – é tratada como uma falha contratual que anula uma apólice de milhões. A seguradora se exime da responsabilidade, transferindo o ônus de um crime violento e da imperfeição da tecnologia para a vítima.

Essa conclusão, no entanto, é simplista e, em muitos casos, juridicamente abusiva. A recusa da indenização só é legítima se a seguradora conseguir provar uma relação de causa e efeito direta entre a falha do equipamento e a ocorrência do roubo. No escritório Nunes Advogados, nossa atuação é trazer a disputa para o campo da realidade, demonstrando que a tecnologia é uma ferramenta de mitigação, não um campo de força infalível, e que sua falha pontual não pode servir como um cheque em branco para a seguradora negar a cobertura.

O Plano de Gerenciamento de Risco (PGR) e a Lógica do “Tudo ou Nada” da Seguradora

O PGR é o coração da apólice de seguro de transporte. É um documento detalhado, negociado entre as partes, que estabelece todas as regras que a transportadora deve seguir: o tipo de rastreador, a existência de redundâncias (iscas, sensores), a empresa de monitoramento, as rotas permitidas, os horários de circulação, os pontos de parada autorizados, etc. Do ponto de vista da seguradora, o PGR é um contrato dentro do contrato, e seu cumprimento é uma condição absoluta para a validade da cobertura.

A lógica da seguradora é, frequentemente, a do “tudo ou nada”: qualquer desvio, por menor que seja, é tratado como uma quebra de contrato que a isenta de pagar a indenização. Essa visão ignora a complexidade da operação logística e a realidade de que a tecnologia falha. Mais importante, ela ignora um princípio fundamental do direito: a necessidade de provar que a falha foi, de fato, a causa do dano.

O Pilar da Defesa: Desconstruindo o “Nexo Causal”

O pilar central de qualquer defesa contra uma negativa baseada em falha tecnológica é o nexo de causalidade. Não basta a seguradora apontar o descumprimento de uma cláusula do PGR; ela tem o ônus de provar que, se aquela cláusula específica tivesse sido cumprida à risca, o sinistro teria sido evitado ou seus danos drasticamente reduzidos. É uma prova extremamente difícil de ser produzida, e é explorando essa dificuldade que construímos a defesa.

A pergunta que deve ser feita não é “O rastreador falhou?”, mas sim: “A falha do rastreador foi a razão pela qual o roubo foi bem-sucedido?”. Na maioria dos casos, a resposta é não.

Cenários em Prática: Quando a Tecnologia Falha, mas a Cobertura se Mantém

Vamos analisar os cenários mais comuns de negativa e como a tese do nexo causal é aplicada para reverter a decisão.

  • Cenário 1: O Roubo por Rendição do Motorista (Assalto à Mão Armada) Este é o tipo de crime mais comum no Brasil. A quadrilha aborda o motorista em um posto de gasolina, em um pedágio ou simulando um acidente. O motorista é rendido, muitas vezes sob ameaça de morte, e levado como refém, enquanto outro criminoso assume o caminhão. Tese da Seguradora: “O motorista não acionou o botão de pânico” ou “O rastreador foi bloqueado por um jammer e a empresa de monitoramento não agiu a tempo”. Nossa Estratégia de Defesa: Aqui, o nexo causal é claramente quebrado. A causa primária e determinante do sinistro não foi a falha tecnológica, mas a coação irresistível e a violência contra uma pessoa. Nenhum motorista em sã consciência arriscaria a própria vida para acionar um botão de pânico. Da mesma forma, a ação de jammers é uma tática criminosa que se sobrepõe à tecnologia. O roubo teria sucesso com ou sem o funcionamento perfeito do sistema, pois a sua natureza foi a rendição humana, não a falha eletrônica.
  • Cenário 2: A Perda de Sinal em “Áreas de Sombra” O veículo passa por uma região de serra, um vale ou uma área rural com pouca cobertura de telefonia, e o sinal do rastreador se perde por alguns minutos ou horas. O roubo ocorre justamente nesse intervalo. Tese da Seguradora: “O veículo estava sem monitoramento no momento do crime, em descumprimento ao PGR”. Nossa Estratégia de Defesa: A defesa aqui é mais sutil. As “áreas de sombra” são um risco conhecido e inerente à operação de transporte em um país com a geografia do Brasil. A rota percorrida era a usual e aprovada? A tecnologia de rastreamento, homologada pela própria seguradora, tinha essa limitação conhecida? A perda de sinal foi a causa que permitiu o roubo, ou foi apenas uma coincidência de tempo e espaço? Se o crime foi um assalto à mão armada, por exemplo, ele ocorreria de qualquer maneira, com ou sem sinal. Argumentamos que a seguradora, ao aprovar a operação, assumiu o risco inerente às limitações da tecnologia e da infraestrutura de comunicação do país.
  • Cenário 3: A Pane Súbita e Imprevisível do Equipamento No meio da viagem, o rastreador principal simplesmente para de funcionar devido a uma pane elétrica ou de hardware, sem qualquer ação do motorista. Tese da Seguradora: “O equipamento não estava em perfeito estado de funcionamento, conforme exigido”. Nossa Estratégia de Defesa: A transportadora tem o dever de manter a manutenção dos equipamentos em dia. Se essa manutenção pode ser comprovada, uma pane súbita e imprevisível pode ser caracterizada como um “caso fortuito”, um evento que escapa ao controle da empresa. Novamente, a questão volta-se para o nexo causal: a ausência do sinal foi o que causou o roubo? Ou o roubo, por sua natureza (ex: abordagem violenta), teria acontecido de qualquer forma? A defesa é provar que a transportadora foi diligente e que a pane foi um evento isolado e imprevisível, não uma negligência.

A Responsabilidade da Empresa de Monitoramento: Um Fator Decisivo

Muitas vezes, a falha não está no rastreador, mas na ação (ou inação) da empresa de monitoramento, que é uma terceira parte na relação, geralmente indicada ou homologada pela própria seguradora. A central de monitoramento pode demorar a perceber a perda de sinal, seguir um protocolo de acionamento incorreto ou falhar em contatar as autoridades a tempo.

Nesses casos, a defesa ganha um novo e poderoso argumento: a seguradora não pode penalizar a transportadora pela falha de um fornecedor que ela mesma credenciou. A responsabilidade pela falha no serviço de monitoramento deve ser discutida entre a seguradora e a empresa de monitoramento, não podendo servir como pretexto para negar a indenização à transportadora, que cumpriu sua parte ao contratar e manter o serviço exigido.

Passos Estratégicos Imediatos

  1. Preserve a Prova Técnica: Imediatamente após o sinistro, notifique formalmente a empresa de rastreamento e a de monitoramento para que forneçam os logs completos de comunicação do veículo, incluindo os momentos de perda de sinal, as tentativas de contato e as ações tomadas. Este é o documento mais importante da sua defesa.
  2. Contrate uma Perícia Independente: Se a causa da falha é técnica, considere contratar um perito independente para analisar o equipamento e emitir um laudo sobre o motivo da pane. Isso cria um contraponto técnico ao laudo que a seguradora certamente produzirá.
  3. Construa a Narrativa do Sinistro: Reúna todos os detalhes sobre a abordagem criminosa. O depoimento do motorista é crucial para provar a violência e a coação, elementos que quebram o nexo causal com a falha tecnológica.

A tecnologia é uma aliada, mas não é infalível. Uma negativa de cobertura baseada em sua falha é, muitas vezes, uma tentativa da seguradora de transferir um risco que é dela para você. Uma defesa técnica e bem fundamentada pode reverter essa injustiça e garantir que sua apólice cumpra o seu propósito.