Falha na Averbação de Carga: Defesa Contra Negativa de Seguro
O telefone toca no meio da noite. A notícia é a que todo gestor de logística teme: um caminhão de alto valor, transportando uma carga valiosa, acaba de ser roubado. Após os procedimentos iniciais de acionamento da polícia e da equipe de pronta resposta, a atenção se volta para o seguro. É nesse momento que uma dúvida fria percorre a espinha do gestor: aquela carga específica, despachada na correria do fim do dia, com o sistema apresentando instabilidade, foi formalmente averbada? Dias depois, a confirmação do pior cenário chega na forma de uma carta da seguradora: a indenização foi negada por “falha na averbação da carga”.
Essa situação é, talvez, a mais comum, frustrante e financeiramente devastadora para as empresas de transporte. A seguradora se apega a uma formalidade contratual para anular uma cobertura de milhões, deixando a transportadora com a responsabilidade integral pelo prejuízo perante seu cliente, o embarcador. A sensação é de que a parceria com a seguradora era uma ilusão, válida apenas enquanto os prêmios eram pagos, mas desfeita no momento em que a proteção era mais necessária. A confiança, pilar de qualquer relação securitária, é quebrada, e a empresa se vê sozinha, enfrentando uma crise que ameaça sua reputação e sua saúde financeira.
No entanto, é fundamental entender que essa negativa não é uma sentença final. É a tese de defesa da seguradora, e ela pode, em muitos casos, ser contestada e revertida. No escritório Nunes Advogados, temos uma vasta experiência em desconstruir essa argumentação, demonstrando que a realidade operacional, a boa-fé da transportadora e os próprios atos da seguradora ao longo do contrato se sobrepõem ao formalismo excessivo.
Desmistificando a Averbação: A Obrigação Contratual vs. a Realidade Operacional
Para construir uma defesa sólida, primeiro é preciso entender a natureza da disputa. A averbação é o ato pelo qual a transportadora informa à seguradora os detalhes de cada embarque (origem, destino, valor da mercadoria, dados do veículo), dando “vida” à cobertura para aquela viagem específica. Do ponto de vista da seguradora, a averbação prévia ao início do risco é essencial para que ela possa mensurar sua exposição e calcular o prêmio devido. A lógica contratual é linear: sem averbação, não há conhecimento do risco; sem conhecimento do risco, não há cobertura.
A realidade da operação logística, no entanto, é tudo menos linear. Em um ambiente de alta pressão, com centenas de embarques diários, janelas de carregamento apertadas e a necessidade de colocar os veículos na estrada o mais rápido possível, o processo de averbar individualmente cada carga antes de o motorista dar a partida pode ser logisticamente impraticável ou até mesmo impossível. Muitas empresas, por necessidade operacional, adotam sistemas de averbação em lotes, transmitindo os dados à seguradora ao final do dia ou em outros intervalos regulares. É uma prática de mercado, nascida da necessidade de eficiência.
É exatamente nesse choque entre a rigidez da cláusula contratual e a fluidez da prática operacional que a disputa nasce. A seguradora tentará usar a letra fria do contrato contra você. Nossa missão é usar a realidade da sua relação comercial com ela a seu favor, demonstrando a um juiz que a prática, e não apenas a teoria, deve reger a relação entre as partes.
A Tese Central da Defesa: A Aceitação Tácita e o Comportamento Contraditório da Seguradora
A principal linha de defesa contra uma negativa por falha na averbação se baseia em um princípio fundamental do direito contratual: a boa-fé objetiva. Um dos desdobramentos desse princípio é a proibição do comportamento contraditório, conhecido no jargão jurídico como venire contra factum proprium (vir contra um fato próprio). Em termos simples, uma parte não pode se beneficiar de uma prática por um longo período e, de repente, alegar que essa mesma prática é inválida quando ela lhe gera uma obrigação.
Como aplicamos isso ao seu caso?
- Análise do Histórico de Pagamentos e Cobranças: A primeira etapa da nossa atuação é uma auditoria completa na sua relação comercial com a seguradora. Como os prêmios mensais eram calculados? Se sua empresa rotineiramente enviava os dados de embarque em lotes (por exemplo, todos os dias às 18h) e a seguradora, com base nesses relatórios, calculava o prêmio, emitia os boletos e recebia os pagamentos sem qualquer ressalva, ela tacitamente concordou com o seu processo operacional. Ao aceitar seu dinheiro, gerado por um método de averbação “a posteriori”, ela validou esse método. Alegar, apenas no momento do sinistro, que o procedimento é irregular, é um comportamento contraditório que a Justiça tende a rechaçar.
- Comunicação com o Corretor e a Seguradora: A forma como sua operação foi apresentada e discutida com o corretor de seguros e com a própria seguradora no início e ao longo do contrato é uma prova crucial. Houve e-mails, atas de reunião ou mesmo mensagens informais onde o seu método de averbação em lotes foi mencionado ou explicado? Se a seguradora ou seu representante legal (o corretor) tinham ciência do seu procedimento e nunca o objetaram formalmente, essa ciência fortalece a tese da aceitação tácita. O corretor, como intermediário, tem o dever de alinhar as expectativas e garantir que a apólice reflita a realidade da operação do cliente. Sua falha em fazê-lo não pode prejudicar o segurado de boa-fé.
O Manifesto de Carga e a Prova da Boa-Fé: Diferenciando Erro Operacional de Fraude
A lei securitária visa punir a fraude, não o erro operacional ou a falha de procedimento. Nossa argumentação se concentra em usar a sua própria documentação fiscal e logística para provar a sua boa-fé e a ausência de qualquer intenção de lesar a seguradora.
O Manifesto Eletrônico de Documentos Fiscais (MDF-e), a Nota Fiscal (NF-e) e o Conhecimento de Transporte Eletrônico (CT-e) são documentos oficiais, com validade jurídica, que comprovam a existência e a legitimidade da operação de transporte. Se a carga sinistrada estava amparada por toda essa documentação, isso constitui uma prova robusta de que a transportadora não estava tentando “esconder” aquela carga para não pagar o prêmio. Pelo contrário, demonstra que a operação era transparente e que a inclusão daquela viagem no próximo lote de averbação era o passo seguinte natural do processo.
A defesa, aqui, é clara: a ausência da formalidade da averbação, quando todas as demais formalidades fiscais e operacionais foram cumpridas, caracteriza um mero lapso de procedimento, um erro operacional, e não a má-fé deliberada que a lei exige para justificar a perda de um direito tão importante. Argumentamos que o risco foi, de fato, transferido para a seguradora no momento em que a operação logística se iniciou de forma legítima, e que a averbação é a formalização da cobrança do prêmio, e não o ato que cria a cobertura em si, especialmente em apólices abertas como as de transporte.
O Que Fazer Imediatamente Após Receber a Negativa? Passos Estratégicos
A forma como você reage à carta de negativa pode influenciar todo o curso da disputa. A agilidade e a estratégia nos primeiros dias são cruciais.
- Preserve Todas as Provas: Não delete nada. Reúna imediatamente toda a documentação referente à carga sinistrada (MDF-e, NF-e, CT-e), os logs do seu sistema de gestão de transportes (TMS) que mostram quando a viagem foi registrada, e, crucialmente, todo o histórico de comunicação (e-mails, mensagens, propostas) e de pagamentos (boletos, comprovantes) com a seguradora e o corretor.
- Não Admita Culpa ou Erro: Em sua comunicação com a seguradora, o corretor ou o embarcador, não admita que houve um “erro na averbação”. Apenas relate os fatos e afirme que a carga estava sob a vigência da apólice. A admissão de culpa, mesmo que informal, pode ser usada contra você posteriormente para enfraquecer sua posição.
- Realize uma Auditoria Interna: Antes de responder formalmente, faça uma análise interna. Verifique o histórico de averbações e pagamentos dos últimos 12 meses. Confirme se o método de averbação em lote era consistente e se a seguradora sempre o aceitou. Documente essa consistência.
- Responda com uma Notificação Extrajudicial Técnica: A resposta à negativa da seguradora não deve ser um simples e-mail. Deve ser uma notificação extrajudicial formal, elaborada por especialistas, que já apresente os fundamentos da sua defesa: a aceitação tácita da seguradora ao seu método operacional, a prova da sua boa-fé através dos documentos fiscais, a ausência de prejuízo para a seguradora (que receberia o prêmio correspondente de qualquer maneira) e a proibição do comportamento contraditório. Essa primeira resposta formal define o tom da disputa e mostra à seguradora que você está preparado para levar a questão às últimas consequências.
Reverter uma negativa por falha na averbação é um trabalho técnico e detalhado. Exige a análise de todo o histórico da relação comercial para provar que a sua prática operacional, ainda que não perfeita no papel, sempre foi transparente, de boa-fé e, o mais importante, aceita pela companhia que agora tenta usá-la contra você.
