Agravamento de Risco em Seguro de Vida: Limites da Negativa

Você recebe a carta de negativa da seguradora e, entre os termos técnicos, um se destaca: “agravamento de risco”. A companhia alega que, após a contratação do seguro, você (ou seu familiar) adotou um comportamento que aumentou a probabilidade do acidente ou da morte e, por isso, a indenização não é devida. A acusação pode ser baseada em um novo hobby, como o motociclismo; na prática de um esporte; ou até mesmo em hábitos de vida. De repente, as escolhas pessoais e a forma de viver são colocadas em um tribunal pela seguradora, usadas como justificativa para quebrar uma promessa contratual.

Essa tese é uma das mais perigosas para o segurado, pois ela mergulha em um campo de extrema subjetividade. No entanto, a lei e a jurisprudência estabelecem limites muito claros e rigorosos para a sua aplicação. A seguradora não pode, de forma arbitrária, julgar o estilo de vida do segurado para se eximir de sua obrigação.

No escritório Nunes Advogados, nossa atuação é impor esses limites, desconstruindo a narrativa da seguradora e demonstrando, com base na técnica jurídica e nos fatos, quando a alegação de agravamento de risco não passa de um pretexto para uma negativa indevida.

A Base Legal e Seus Limites: O que Diz o Artigo 768 do Código Civil?

O fundamento legal para a negativa por agravamento de risco está no Art. 768 do Código Civil, que afirma: “O segurado perderá o direito à garantia se agravar intencionalmente o risco objeto do contrato.”

A chave para toda a discussão está na interpretação das palavras “agravar intencionalmente”. Não se trata de qualquer mudança ou de qualquer novo risco. Para que a seguradora possa legitimamente negar a cobertura, ela tem o ônus de provar, de forma clara e inequívoca, a existência de três requisitos cumulativos. A falha em provar apenas um deles torna a negativa abusiva.

Os Três Pilares da Defesa: Desconstruindo a Tese da Seguradora

Uma defesa estratégica contra a alegação de agravamento de risco se concentra em demolir os três pilares que a seguradora precisa construir.

  1. A Intencionalidade: Ação Deliberada, Não Mera Imprudência

O primeiro requisito é que o agravamento do risco tenha sido intencional. Isso significa que o segurado deve ter agido com a consciência e a vontade de se expor a um perigo maior do que aquele que existia quando contratou o seguro.

  • O que não é intencional? Atos de negligência ou imprudência do dia a dia. Um motorista que, em uma ocasião, excede o limite de velocidade e sofre um acidente, cometeu uma infração, mas não se pode presumir que ele teve a “intenção” de agravar o risco de sua apólice de seguro de vida. A jurisprudência majoritária entende que a culpa no trânsito, por si só, não configura o agravamento intencional exigido pelo Art. 768.
  • O que pode ser considerado intencional? A participação em atividades de altíssimo risco, notoriamente perigosas, como “rachas” (corridas ilegais) ou a prática de esportes radicais extremos sem a devida comunicação e adequação da apólice. Mesmo nesses casos, a intencionalidade precisa ser analisada no contexto.

A defesa, aqui, é demonstrar que a conduta do segurado, ainda que tenha contribuído para o sinistro, não foi um ato deliberado de aumentar o risco contratual, mas sim um evento inserido na normalidade da vida ou um ato de imprudência pontual, que não se confunde com o dolo exigido pela lei.

  1. A Substancialidade: O Risco Deve Mudar de Patamar

Não basta qualquer aumento de risco. O agravamento precisa ser substancial, ou seja, ele deve alterar de forma significativa o equilíbrio do contrato. A seguradora precisa provar que, se soubesse da nova atividade ou conduta, ela comprovadamente não teria aceitado o seguro ou teria exigido um prêmio (valor) muito maior, em uma categoria de risco completamente diferente.

  • Exemplo de Agravamento Não Substancial: Um segurado sedentário que começa a praticar corrida de rua ou a jogar futebol nos fins de semana. Embora tecnicamente haja um “aumento” de risco de lesão em comparação com o sedentarismo, essa é uma mudança de hábito comum e saudável, que não altera fundamentalmente o perfil de risco para uma apólice de seguro de vida.
  • Exemplo de Agravamento Substancial: Um segurado com uma apólice padrão que se torna piloto de acrobacias aéreas ou mergulhador profissional em grandes profundidades. Nesses casos, a natureza do risco muda de patamar, e a omissão dessa nova atividade profissional pode, sim, ser considerada um agravamento substancial.
  1. O Nexo Causal Direto: A Causa Determinante do Sinistro

Este é o pilar mais importante e, frequentemente, o mais negligenciado pelas seguradoras. Não basta provar que o segurado agravou o risco; é preciso provar que o sinistro (a morte ou a invalidez) foi a consequência direta e imediata do risco que foi agravado. Se não houver essa conexão direta, a negativa de cobertura é ilegal.

  • Exemplo Clássico de Ausência de Nexo Causal: Um segurado começa a praticar alpinismo, um claro agravamento de risco. Um dia, porém, ele está em casa, escorrega no banheiro, bate a cabeça e vem a falecer. A seguradora pode tentar negar a cobertura alegando que ele “agravou seu risco de vida” ao se tornar alpinista. Essa negativa é completamente abusiva. Embora ele tenha agravado um risco (o de morrer escalando), não há nenhum nexo causal entre esse agravamento e o sinistro que de fato ocorreu (a queda no banheiro). O evento fatal não teve relação com a conduta de risco.
  • O Caso da Embriaguez ao Volante: Este é um dos temas mais debatidos. Se o segurado falece em um acidente de carro e o exame toxicológico aponta a presença de álcool, a seguradora automaticamente negará a cobertura. No entanto, o STJ tem um entendimento protetivo para o seguro de vida (diferente do seguro do automóvel). Para negar a cobertura, não basta provar a embriaguez. A seguradora precisa provar que o acidente foi causado direta, imediata e exclusivamente pelo estado de embriaguez. Se outros fatores contribuíram para o acidente (pista mal sinalizada, falha mecânica, culpa de um terceiro), a indenização pode ser devida. O ônus de provar que a embriaguez foi a causa única e determinante é da seguradora.

Estratégia de Defesa na Prática

Diante de uma negativa por agravamento de risco, a defesa se concentra em forçar a seguradora a cumprir seu pesado ônus probatório.

  1. Questionar a Intencionalidade: Demonstramos que a conduta foi um ato isolado, uma imprudência comum ou uma atividade que não era percebida pelo segurado como um risco que deveria ser formalmente comunicado.
  2. Analisar o Nexo Causal: Este é o ponto central. Focamos em produzir provas (perícias, laudos, testemunhas) que demonstrem que a causa da morte ou da invalidez foi independente da conduta de agravamento alegada pela seguradora. Desconectar a causa do efeito é a forma mais eficaz de invalidar a negativa.

A cláusula de agravamento de risco não é um cheque em branco para a seguradora julgar e penalizar o modo de vida de seus clientes. É um dispositivo legal com requisitos estritos e que exige uma defesa técnica e vigilante para garantir que não seja usado de forma abusiva.